30 novembro 2006

Aqui comigo

Doem-me partes de mim que eu nunca antes sentira. A mágoa entranhou-se em mim com as suas raízes negras perfurantes e dedilha agora nervos profundos e esquecidos. De histórias antigas e palavras mal medidas. De actos irreflectidos, de conselhos que nos afastavam e de destinos que nos tolheriam. Este fel borbulhante e espesso escorre-me das feridas, em tons de negro e lustre. A dor tem faces bem piores que a mera dor. Tem a dor que não é dor, mas memória de dor. E essa dor velha hoje é dor também.

E hoje não te quero ver, nem ouvir. Hoje não te quero. Não quero precisar de ti. Não quero as tuas palavras, os teus sons. Não quero nada de ti, hoje. Desde que estejas aqui comigo.

23 novembro 2006

Era um quadro

Era um quadro, onde ela estava à lareira quente de um Janeiro antigo, com brasas murmurando uma velha melodia, envolvente e distante. À distância de uma parede vertical. Intransponível para tudo que não o olhar...

Egoísta perpendicular esta, do olhar e do quadro. Que se deixa criar e sentir, apenas para maior ensejar. Sem permissão de tocar. Sem possibilidade real. Sem amar.

O peso do quadro cedeu nas minhas mãos e tombou sobre o cavalete, o óleo escandalizado, os pinceis mutuamente se excomungando. Obliquas decidem-se, não se choram. Decidem-se com mãos sujas de tinta e roupa estragada. Com noites mal dormidas e madrugadas trabalhadas. E ali, onde eu me faltava, entre ela e o carvão ardente, me instalei de novas e vivas cores. E até na tela fomos felizes.

16 novembro 2006

...

É tempo demais. Preciso da tua pelo na ponta dos meus dedos. O calor escaldante do teu corpo nu. As marcas das minhas unhas nas tuas costas, os meus dentes cerrados nas tuas coxas, as tuas lágrimas na minha boca, o teu cabelo a escorrer no meu peito, as tuas mãos coladas a mim, os meus braços na tua cintura, o teu peito nas minhas palmas, as minhas pernas e as tuas, o teu corpo em volta do meu, o teu cheiro na minha língua, o nosso suor, o nosso amor… a tua voz… Quero sentir as tuas palavras no meu rosto, murmuradas, gemidas, sussurradas de encontro às minhas. Quero sentir o teu prazer. Quero sentir-te. Quero-te a ti.

09 novembro 2006

Poema

A vida rimou-me contigo sem métrica regular, nem estilo definido. Numa qualquer Primavera buscou e desejou a inspiração, pedindo-a à praia, talvez num inocente flirt com o mar, numa conversa de serra e montanha. Mas a musa nem levantou os olhos do seu doce sonho, suave dormir. Ao primeiro verso branco o coração palpitou, o olhar brilhou, o sentimento chegou. A paixão invadiu aquela praia como tirando desforço de toda a injustiça deste Mundo… e de muitos outros. Selvagem, errática, destruidora… densa e sem leito. Arrastou-nos aos dois mar adentro, em êxtase, em pânico, presos um ao outro – com garras de existir apenas um nós, não dois. Ninguém assim ama impunemente, soprava o vento.

O Sol brilhou abrasador e secou-nos a pele deixando apenas sal branco e reflexos de luz. Serenou o vento no passar da quadra, no fim do soneto… e nós ali ficámos. Na linha sangrenta que nos atropelou, recolhendo restos, chorando memórias, mas juntos. Uma paixão assim, só se desperdiça por um amor maior.

02 novembro 2006

Bela

Tinha olhos esverdeados, esquivos e desconcertantes. Da primeira vez iludiu-me, quase nem a percebi. Mas logo em seguida individualizou-se. Com nitidez. Pronunciei o gesto, repousei o olhar, esqueci os modos. E ela de imediato se apercebeu. E uma ansiedade se instalou. Eu por me ter deixado apanhar. Ela por ter sido apanhada.

Nesse dia ainda partimos sem nos conhecer. Mas tínhamo-nos reconhecido.